sábado, 7 de novembro de 2009

Religião e bom-senso!



Duas pequenas narrativas.

Dois amigos caminham por uma rua de sua cidade, conversando, distraídos após um dia de trabalho, quando são tomados de assalto por um homem aparentemente armado, com a mão direita oculta sob a camiseta, a exigir que lhe dessem os celulares e as carteiras. Um dos companheiros, supondo tratar-se de uma simulação (julgava pouco provável haver realmente ali uma arma), resolve reagir. Morde a canela do agressor, e é baleado.


Dois amigos caminham por uma rua de sua cidade, conversando, distraídos após um dia de trabalho, quando são tomados de assalto por um homem aparentemente armado, com a mão direita oculta sob a camiseta, a exigir que lhe dessem os celulares e as carteiras. Um dos companheiros, confiante nas palavras atribuídas ao Poderoso Flying Spaghetti Monster¹, o deus de seus pais, ajoelha-se, provoca vômito com um dedo na garganta e atira sobre o assaltante o que sobrara do macarrão sagrado que havia comido no almoço. É baleado.

O que há de comum nessas pequenas passagens trágicas é que trazem, na reação das vítimas, um singelo exemplo do que eu nomearia “absoluta ausência de bom-senso”. Em outras palavras, as reações acima ou outras semelhantes jamais seriam efetuadas – "jamais" é comprometedor – pelas pessoas a quem costumamos atribuir o adjetivo “sensatas”. Talvez eu vá usar os exemplos, algum dia, para explicar à minha filha o que NÃO É sensatez, ou ação razoável, ou “o que o papai não acha inteligente de se fazer em situações de crise”.

A filosofia da Análise do Comportamento apresenta alguns pressupostos que têm perdurado ao longo de sua existência graças (creio) à sua utilidade para a compreensão dos fenômenos sobre os quais se debruça. Se eles resistem ao avanço da ciência, dizemos que são validados (ou que não foram invalidados), e, se são “revogados” por novos dados e interpretações, podemos ter a satisfação de dar-lhes um “adeus”. Um desses pilares do estudo científico da conduta é que aquilo que fazemos só pode ser satisfatoriamente explicado pelo recurso às nossas determinações genéticas e ambientais. Isso pode ser dito, e é dito, de muitas maneiras: somos fruto de uma história genética e ambiental; o organismo está sempre “certo”, pois se comporta de acordo com as contingências vigentes; não existe mau aluno, existem condições de aprendizagem ruins; e por aí se segue.

E os pensamentos e os sentimentos? Em tese, também eles entram no leque das coisas que fazemos e que, portanto, recorrem ao mesmo tipo de explicação. Nosso amigo, adorador do Flying Spaghetti Monster (FSM), jamais teria pensado em proceder de forma tão mirabolante se isso não lhe tivesse sido ensinado (ambiente social), ou se não lhe tivessem sido dadas as condições de assim proceder. Graças à seleção natural, ele tem um coração (que deve ter acelerado seus batimentos na situação), pode abaixar-se, produzir fala, colocar um dedo na garganta e vomitar as sobras de seu almoço. Mas para ter agido de forma tão pouco econômica na situação, teve de aprender a linguagem através de uma comunidade, que depois lhe ensinou algo como “Esse mundo não é real. Se você confiar no poder do FSM, e perder sua vida por ele (literalmente ou não), receberá a vida eterna, na Cidade do Pai Macarrão!”.

Outra narrativa, esta um pouco mais conhecida.

Nas últimas horas da noite, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar. Quando os discípulos o viram andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: “É um fantasma”. E gritaram de medo. Mas Jesus logo lhes falou: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” Então Pedro lhe disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água.” Ele respondeu: “Vem!” Pedro desceu do barco e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus. Mas, sentindo o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-me!” Jesus logo estendeu a mão, segurou-o e lhe disse: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?” Assim que subiram no barco, o vento cessou.


Além do final menos trágico, penso eu que por razões bastante fortes a determinar o que era narrado nesse último evento (Mt. 14: 25-32), o que torna uma passagem diferente da outra, em síntese, é que a segunda foi (e é) ensinada para muitos como fato histórico. Mais importante ainda: é tomada como oportunidade de se explicar que tipo de confiança se deve ter na palavra daquele que deverá ser seguido, a ponto de se tornar censurável o bom-senso concernente à preservação da própria vida. O medo de Pedro é negativamente exemplificado ao se ensinar o que se espera de um “cristão autêntico”.

E o que se espera de um cristão autêntico pode variar de acordo com as interpretações que são feitas, com a comunidade que ensina o Cristianismo, com suas particularidades históricas, com o trecho da Bíblia que está sendo lido, ou com outra fonte. Mesmo que ao fundador tenham sido atribuídas frases de amor altruísta, houve momentos em que o que se esperava de um cristão verdadeiro envolvia padrões de conduta pouco condizentes com aquela postura, tais como delatar hereges, ou comunistas, ou terroristas/inimigos do regime, para lembrar nossa história recente. Aliás, interessante tentar conciliar esta postura com a dos cristãos que foram ativos nos focos de resistência à ditadura militar no Brasil, na mesma época.

Enquanto eu aceitar o pressuposto da ciência do comportamento acima discutido, lutarei contra explicações do tipo “é que alguns são mais espertos, pensam por si, enquanto outros são do tipo gado, fazem o que lhe dizem”, ou “alguns são sensatos, outros não”, ou “alguns são covardes”, ou quaisquer outras nesse sentido.

As pessoas se comportam de forma adaptativa. O que chamamos de bom-senso, em minha opinião, se mantém como um guia de nossas condutas enquanto serve para nos propiciar uma relação mais eficaz com o ambiente em que vivemos. Se nos é ensinado que esse mundo não é real, e que teremos prêmios a perder de vista se seguirmos algum preceito religioso qualquer, é possível compreender porque alguns seres viventes assumem a disposição de perder essa qualidade, em um 11 de Setembro qualquer.Temos outros parâmetros que não a autoridade de escritos de tempos remotos para guiar nossa relação com os nossos pares, o que será, espero, assunto de uma próxima conversa.


1. http://pt.wikipedia.org/wiki/Flying_Spaghetti_Monsterism