sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Livre-arbítrio?


Para inaugurar, já com certo atraso, as nossas conversas, pensei em cutucar um tema recorrente em meus ambientes (dos profissionais aos mais descontraídos): o livre-arbítrio.

Antes de qualquer coisa, acho justo dizer que este é um terreno onde levanto bandeira, sem pudor algum, visto que há alguns anos advogo idéia de que livre-arbítrio, Papai Noel e Chapeuzinho Vermelho pertencem à mesma categoria das nossas atividades “superiores”: são pura ficção. À medida que fui revendo algumas explicações sobre as razões de fazermos o que fazemos (os porquês de nossas decisões, por exemplo), pareceu-me cada vez mais convincente a idéia de que há culpados para as asneiras – ou coisas boas – que fazemos. Mas a culpa não é nossa!

Há quem culpe a deuses, diabos, espíritos em geral, aos astros, e, mais comumente (talvez), dentro do que se costuma chamar de bom senso, há quem atribua boa parte do que fazemos ao tal livre-arbítrio. É verdade que esses últimos assumem que se podemos decidir livremente os rumos de nossa conduta então somos culpados, sim. Melhor dizendo: somos responsáveis pelo que fazemos. É dessa posição, tradicional em nosso pensamento e vigorosa em nosso direito, que discordo. Nosso ambiente e nossa herança genética (que por sua vez decorre de uma longa interação entre genes e ambiente ao longo de uns bilhõezinhos de anos) são os meus culpados favoritos.

Há, para essa visão, razões mais nobres que a motivação de aporrinhar meus colegas do mundo jurídico. É que tive contato com fatia preciosa da produção de um século de pesquisas científicas sobre o comportamento humano e animal. E as regularidades e irregularidades observadas me fizeram concordar com a idéia de que não há um só movimento de matéria viva no planeta que não seja passível (em tese) de uma explicação a partir da interação daquele organismo (evoluído como está) com o ambiente com o qual se relaciona. Isso significa dizer que as relações que explicam o movimento de uma abelha ao picar um agressor são da mesma natureza das que explicam porque alguém torce para o Fluminense ou porque ministros de uma corte têm decisões diferentes para um mesmo caso sob sua análise.

Esta forma de olhar para nós mesmos não parece nada glamourosa, visto que nos retira os méritos e deméritos das conquistas e derrotas. Os problemas jurídicos que decorreriam de sua aceitação seriam de tal abrangência que teríamos, no mínimo, de repensar explicações tradicionalmente aceitas e pouco questionadas (o “pouco” vai por minha conta e risco como, aliás, segue todo o resto) para o nosso sistema punitivo, para os efeitos das declarações de vontade, para a noção de capacidade jurídica, e para tantos outros aspectos.
Tenho observado em bons momentos de debates sobre o tema que parte considerável de meus interlocutores, após perceber que não estou de gozação (não somente), passa por um momento de surpresa do tipo “Uau! Ele está defendendo o determinismo!”, para depois tentar desconstruir a tese com exemplos (famosos ou não) de pessoas que teriam “superado seus limites” e ido aonde outros “com as mesmas condições” jamais chegaram.

Nesse ponto a coisa fica linda! Quando tratamos de nossos maus momentos podemos tender a ser um pouco mais “ambientalistas”, no sentido: “Putz! Não fosse a chuva eu teria chegado no horário”. Quando se trata de avaliar ganhos, é comum valorizar o nosso “diferencial”: “Estudei nos mesmos colégios que meu irmão e me tornei alguém na vida, enquanto ele...”! Por outro lado, ainda podemos aceitar certa proeminência ambiental quando estão sob análise situações onde não há o que comumente se entende por liberdade. Ex: legítima defesa, estado de necessidade, etc. Não se lança sobre o pai que rouba comida para seu filho faminto o mesmo olhar destinado ao administrador da coisa pública que enriquece às custas do patrimônio de todos.

Aí entra a idéia abençoada pelo nosso direito da “exigibilidade de conduta diversa”. Em resumo, significa que não se pode reprovar a conduta de alguém quando não é possível dele se exigir postura diferente da que adotou. Em minha opinião, o sistema estaria “fechadinho” e seria tudo perfeito, se alguém conseguisse demonstrar cientificamente em que situações uma conduta diversa poderia ser exigida de um dado sujeito, independentemente de fatores ambientais, passados ou presentes. Parece haver, na imagem tradicional, um intervalo no qual as determinantes genéticas e ambientais não têm tanta importância, e onde o papel de uma consciência livre e responsável é ser o guia das ações humanas.

O que grossa parte do patrimônio legado pelo estudo do comportamento humano tem levado a concluir é que mesmo nossas “funções superiores”, os pensamentos, e tudo o mais que estaria na esfera da deliberação humana, não pode ser suficientemente explicado sem recurso a uma história genética e ambiental. O grande mal de se observar pessoas já crescidas é que a análise valorativa de suas condutas pode desprezar como elas cresceram. Por que alguns irmãos se comportam de formas tão diferentes em uma mesma situação? Eles não tiveram a mesma criação?

Temos sinais ao nosso redor de que um “mesmo” ambiente pode ter significados opostos para sujeitos diferentes, a depender de sua história com aquele ambiente ou com outro semelhante. O exemplo não é meu: uma mãe tem filhos gêmeos. Um inseto pica um deles sem que ninguém se aperceba. Ele chora. A mãe lhe dá o peito. Em seguida amamenta o outro que estava caladinho. Digamos que, por outra razão incidental, o primeiro bebê volte a chorar e receba o leite materno. Como antes, o segundo, caladinho, recebe o alimento em seguida. Que lição eles aprenderam com essa sucessão de eventos? O primeiro bebê aprendeu que chorar é seguido de leite e o segundo aprendeu: “Vou ficar quietinho que eu mamo”.
Os pais que cuidam de um filho não são os mesmos que criaram um primeiro: eles tiveram um aprendizado (positivo ou não) com a primeira experiência e estarão sob controle de uma série de regras e situações que, antes, não tinham o mesmo valor. Basta pensar no exemplo já banalizado de pais que superprotegem o primeiro filho e mudam a dosagem para com o segundo, ao se dar conta de que bebês humanos não são de vidro.

No curso de vidas humanas, histórias de relações com os ambientes sociais mais diversos podem produzir padrões de comportamentos tão diferentes quantas são as idiossincrasias de cada vivente. Entendo que se essas histórias forem conhecidas e devidamente analisadas, a exigibilidade de conduta diversa irá ser estudada apenas em história da ciência jurídica. Isso porque se passará a considerar que as razões sine qua non para a ocorrência de um crime, por exemplo, devem incluir as explicações de por que o agente fez aquele (e não outro) uso de sua vontade.


Se uma mesma casa pode prover ambientes tão diversos para os que nela se desenvolvem, que se dirá das possibilidades contidas em uma humanidade tão complexa?
Ela produzirá de Gandhi a Hitler, nenhum dos dois imune à ação do artesão genético-ambiental a ponto de justificar o título de "extraordinário" pelo que fez. Nenhum dos dois, para o desespero de alguns, além ou aquém do que é o ser humano.




A adoção de uma teoria determinista da conduta não significa a aceitação passiva da própria desgraça, como pode pensar o mais apressado. Ter conhecimento do que nos influencia é, antes, um fator essencial para mudar o nosso próprio curso, ou para mantê-lo, se bem direcionado.
Tampouco significa deixar as sociedades ao arbítrio (mais livre que nunca) de posturas egocêntricas de toda ordem, mas chamá-las (as sociedades) à responsabilidade pelo mal que procriam. Há mais de meio século se desenvolvem tecnologias de modificação comportamental que seguem a esse paradigma. Educação, inclusão (que termo amplo e passível de confusões!), geração de oportunidades e ações que visem prevenir/corrigir as distorções que causam condutas inapropriadas me parecem ser programas urgentes. Urgentes e caros. Penso, todavia, que são mais honestos que os fundamentos (aqui atacados) da descarga que é o nosso sistema punitivo.

PS: Não sou autor de quaisquer das idéias aqui expostas, embora claramente tome partido de algumas. Preferi, neste blog, não fazer comumente citações para que a conversa flua informal, sem recursos à autoridade. Quando eventualmente for conveniente, as fontes serão citadas.

8 comentários:

  1. Rapaz,Gustavo... como tu tá sendo coerente... me identifiquei muito... acho até que já escrevi algo muito parecido com isso aí semana passada... hehehehe
    Beijão!!
    Dayana

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  2. Então, Dayana... Não se admire se um dia um beija-flor invadir a porta do seu msn, trocar (ou furtar) idéias e partir!
    Obrigado, Day!
    A casa é sua!

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  3. Bom texto, Gustavo. Vc escreve muito bem e criar um blog foi uma ótima idéia.
    .
    Abraço.

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  4. Obrigado, Rodrigo! Aqui é o seu quintal! Sugestões, críticas e todas as formas de participação serão bem recebidas!

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  5. Companheiro,
    Parabéns pelo post. Claro, bom de ler, profundo. Interessante sua discussão com o pessoal do Direito. Acho que vale a pena explorar isso. Tudo de bom!
    Abraço!
    Angelo A. S. Sampaio

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  6. Valeu, Angelo!
    Fica a vontade para sugerir rumos. Falando em rumos, semana passada fiz fichamento de uma pesquisa bem interessante que me deu algumas idéias para cá. Discutia aspectos de um estudo sobre o colapso de sociedades... Ôpa! Acho que você conhece. Rss

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  7. Oi Gustavo!!

    Gostei muito mesmo do seu texto!! Tô linkando seu blog no meu, tá!?!

    Só precisa ser mais frequente, rapaz!! A gente quer ler textos bons assim toda semana!!!

    Abraço,

    Aninha!

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  8. Obrigado, Aninha!
    Seja bem vinda! Preciso mesmo ser mais frequente ;) Hoje mesmo posto aqui a exposição de um ponto de vista contrário a esse texto, para a gente ver o outro lado!

    Abraços

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